Bato nas suas costas e espero ele se virar. Ele volta-se lentamente, lentamente por que está velho, acabado, sem força, quase ‘babão’, da juventude só resta um cheiro de água de colônia vagabunda misturado com whisky também vagabundo.
Ele me olha e diz com aquele sorriso nojento.
- Olá mocinha - creio que já lhe avisaram que é um asqueroso, pois tem que se esforçar para não deixar transparecer – posso ajudá-la?
- Sim pode.
- O que posso fazer por você, pode pedir o que quiser. (aqui aflora o ser humano abominável, o tempo não serviu para nada... ele não consegue disfarçar)
- Qualquer coisa?
- O que um homem da minha idade não faria para agradar uma moça tão bonita.
- Você não lembra de mim?
- Não
***
O que será que nos diferencia? Qual é a diferença entre eu e um homem? Por favor, não responda falando que é o seu pau, estou falando de seres plenos, em todas as suas potencialidades, independente de sexo. Vai além de força e sexo. Quem foi a filha da puta que inventou esse negócio de sermos iguais em tudo? Porra, eu não quero ser igual a um homem, mas quero ser respeitada. Não estou dando uma de feminista recalcada, só estou falando como um ser humano.
Não entendo esses caras, quem ensinou a eles que eles podem humilhar e maltratar outra pessoa?
Sempre penso que isso tem haver com algum distúrbio psicológico sabe?
O mesmo cara que maltrata uma mulher ou se acha superior a ela, será que também não se acha superior a um negro, por exemplo?
O mesmo que tenta se esfregar em mim no ônibus pensando que eu vou gostar daquilo, será que também não acha legal as idéias nazistas, por exemplo?
O mesmo que pensa que mulher tem que servi-lo como se fosse uma empregada particular, será que também não acha legal a escravidão, por exemplo?
E aí vale para o que se vangloria das suas traições, que gosta de bater na mulher, que gosta de contar para os amigos o que fez ou deixou de fazer, que passa por mim na fábrica e faz barulhos com a boca ou que é casado e fica me tratando como se eu fosse sua amiguinha... mas conheço suas intenções. Só quer uma foda... escondida, rápida e mal dada, e é uma só! A segunda é com o pau mole (ele precisa ir embora desesperadamente), quase pedindo desculpas e dizendo que está preocupado com isso e com aquilo. Sua masculinidade está no seu órgão.
Também não entendo o instinto. Porque perdem a cabeça por uma bunda? Por que ficam tão desesperados para se mostrar? Para agradar? Para foder? Qual é o botãozinho que eles têm que nós não temos? Um botãozinho que se aperta sozinho e fica apertado até a primeira gozada.
***
- Não, não me recordo. Nós nos conhecemos?
Não sei o que aconteceu comigo naquele dia. Estava na rodoviária de uma cidadezinhha no interior do Paraná (eu não sou gata de Ipanema, sou bicho do Paraná). Estava visitando minha amada tia, irmã de minha mãe, uma das pessoas mais incríveis que conheci, minha grande amiga e tutora. (outro dia falo sobre ela)
Quando o vi ali parado, tão alquebrado, um turbilhão de imagens passou pela minha mente. Como havia sonhado com esse dia, tantas vezes imaginei o que faria se eu o encontrasse na rua, algumas vezes saía do colégio e ficava pensando em encontrá-lo, outras tinha medo, pensava que sairia correndo desesperada ao avistá-lo.
E agora ali estava ele, bem na minha frente, com aqueles olhos miúdos e as suas mãos pequenas. Mas o tempo já era outro, eu não pensava nele fazia muito tempo. Não era mais a menina tímida da escola, a “garota com problemas” que só andava de preto e possuía poucos amigos. O tempo havia parado, parecia que estava em um estado letárgico. Estava casada com um cara que me batia, me xingava, me humilhava e ficava nervoso se eu atrasasse algum serviço da casa. Dizia que me dava tudo, piscina, carro, sapatos (que ele pensava que eu adorava), viagens, jantares, jóias (que ele também pensava que eu gostava)...
Para mim, naquele tempo, liberdade significava poder usar batom na rua. Sonhava em vestir a roupa que quisesse, poder dar uma caminhada, usar um perfume, ler um livro. Que ilusão. Hoje vejo que liberdade não tem nada haver com isso, nunca aquela música “liberdade tá dentro da cabeça” fez tanto sentido. Se me prenderem e eu ficar confinada num cubículo, hoje vou me sentir livre.
Naquele dia que encontrei-o, que já deve fazer uns dois anos, aprendi isso, aprendi sobre o encontro do presente e do passado, sobre meus medos, minhas angústias, uma hora ou outra a gente tem que enfrentar nossos demônios, para mim, sem que nem mesmo eu soubesse, esse dia havia chegado...
- Não, acho que não nos conhecemos, você é parecido com alguém que conheci. Mas já que se ofereceu, será que não gostaria de comer um pastel comigo? Estou passando por um momento muito difícil?
- Claro mocinha, será um prazer.
- Tem uma pastelaria aqui atrás vamos lá?
- Vamos.
Eu tremia toda, meu coração estava disparado, lutava para que ele não visse minha respiração ofegante.
Para ir nessa pastelaria que fica atrás da rodoviária, havia dois caminhos: pelo lado de fora passando pelos taxistas, ou por dentro do bloco novo, que estava em construção há uns dez anos.
- Vamos por aqui, é mais perto – eu disse.
Não sabia nem o que faria. Quando passávamos por entre salas vazias, prontas, mas sem reboco, bocais de luz com fios aparecendo, chão de cimento...
Olhei para os lados para trás e não havia ninguém. Ele falava sem parar. Suas qualidades, sua casa, se eu não queria conhecer isso ou aquilo.
Um pedaço de pau no chão.
Olhei de novo para trás.
- Você não quer ir lá na minha casa?
Abaixei-me.
- Porque você está chorando?
Peguei o pedaço de pau.
- O que você vai fazer com isso?
- Você não lembra de mim, mas eu me lembro muito bem de você. Aliás, sonhei com você até os quinze anos de idade. Lembra do "cheirinho"?
- Calma moça, eu tinha problemas... era instinto.
Dei a primeira paulada nos seus joelhos, bati com força, ele caiu.
- Lembra de mim velho filho da puta.
- Calma, calma. Por favor.
- Eu tinha oito anos seu desgraçado.
Mais uma paulada, dessa vez nos peitos. Ele parece ficar sem ar.
- Pare com isso sua cadela.
- Velho filho da puta – eu gritava – desgraçado.
Naquele momento eu ganhava a liberdade. Todos os meus medos estavam se esmagando, minhas culpas, culpa pela minha mãe ser infeliz, pelo meu pai ser mandão, culpa de não ter filhos, por ter atrasado a janta para os futuros clientes da empresa do meu marido.
- Lembra que você me pegava e dizia: “vamos ver o cheirinho?”, lembra disso seu mostro desgraçado?
Esse cara era amigo do meu pai, visitava-nos, adorava brincar, algumas vezes baixou minhas calcinhas quando eu tinha oito anos e brincava com minha inocência dizendo que criança tinha que ser cheirosinha, “deixa o tio ver” dizia, e cheirava minha bunda, passava a mão, beijava e colocava sua língua nojenta para fora. E enquanto fazia isso marcava para sempre meu caminho, me enchendo de monstros que povoariam minha existência por um bom tempo.
Pisei com força nas suas bolas. Ainda hoje penso nisso e me pergunto de onde arranjei coragem. Dei mais uma paulada nas suas costas. Comecei a chorar, dei um chute na sua barriga. Comecei a chorar compulsivamente.
- Estou livre de você seu nojento filho da puta – falei chorando, com os olhos toldados pelas lágrimas que pareciam sair de uma mangueira.
Saí dali correndo. Ele ficou lá estendido...
Nesse dia comecei a fumar. Sentei no meio fio, sem medo do que os outros iriam pensar de mim, sem vergonha, sem culpa, só estávamos ali eu e eu, os monstros se afastavam lentamente. Entendi a liberdade.
Só me arrependi de ter chamado ele de “velho” e de não ter chutado sua cara.
Algum tempo depois eu me separaria e mandaria o marido-mala para puta que os pariu. Estava livre.
Entendi que a liberdade é algo interior, não exterior, não é o batom, mas a capacidade de enfrentarmos a nós mesmos, nos desnudarmos completamente, tem que ter sinceridade, ao menos com a gente mesmo, e mergulharmos fundo, dá para se machucar, mas no final o gosto do amor-próprio é insuperável.
Encerro com uma frase da Cecília Meireles que eu amo, mas questiono: “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, será?
Tchau Joinville