Os monstros de cada um...

Estava cagando ontem pela manhã bem tranqüila, quando de repente o bicho voou em minha direção.
- Socorro, aí, aí, aí! Saí filha da puta, saí desgraça.
Lá estava eu com a bunda toda cagada e as calcinhas pelo meio das pernas correndo pela casa. Era para ser um dia tranquilo.
Lia um gibi do Chico Bento enquanto esperava que a merda caísse, quando ao invés dela, cai aquela bruxa filha de uma égua nos meus cabelos.
Bruxa no sentido literal da palavra, ou mariposa, como queiram, aquela borboleta gigante com as asas marrons enormes, que parecem dois olhos mortais te observando.
Que caralho aquele bicho foi estragar o meu dia? De onde surgiu aquele monstro? O que eu fiz para merecer isso? Ainda por cima estava atrasada para o serviço. Não pude tomar café. Bruxa filha da puta.
Mas com isso lembrei-me de monstros piores. De outras situações piores da minha vida. Onde os monstros estavam prestes a me atacar. Nem vou contar das baratas voadoras que me fizeram voar do primeiro andar da casa de uma amiga. Me esborrachei, trinquei o pulso e perdi as férias.
Porém o pior foi na casa de um tio, irmão do meu pai. Ele morava em uma cidadezinha de praia no Paraná, uma casa bem legal, toda alternativa e cheia de detalhezinhos interessantes, bibelôs, esculturas, pinturas, tudo muito bem transado. Eu até gostava daquele tio, talvez por ele ser gay e eu não ter que me preocupar se ele iria me sacanear uma hora ou outra.
- Ela dorme lá no ateliê. Ela gostou de lá, não é Galega?
- Mas não é perigoso? - Perguntou meu pai.
- Não, não se preocupe.
Eu era nova, muito doida, a pior aluna da escola e famosa na pequena cidade do interior pelos distúrbios que causava a paz daquele cú de mundo. Após a discussão meu pai acabou aceitando, meu tio o tranqüilizou dizendo que não havia muito que fazer naquela época na cidade, se eu fugisse (como normalmente fazia) não iria encontrar nada, além de ter que andar quase dois quilômetros entre matos e bambuzais para achar alguma luz acesa.
Aconchegada e instalada no ateliê, verifiquei se estava todo mundo dormindo, liguei o som, abri uma cerveja, e preparei a primeira carreira de pó para passar a noite, iria ler alguma coisa e ficar viajando sozinha naquele fim de mundo.
O ateliê era nos fundos da casa, cheio de coisas para fuçar. Livros, revistas, argila, tintas e coisas afins, que não tinham nada haver comigo, mas era legal estar lá. Era bem afastado da casa da frente e dava para escutar som bem alto.
Como disse antes eu era muito doidinha. Levei uma grama de coca escondida na bolsa, disse para o amigo que me arranjou que era para passar o final de semana na casa do tio. Ele disse:
- Cuidado galega, que essa aí é quase pura heim?
- Ih meu, relaxe, tu sabe que comigo a coisa é tranqüila.
Foi a pior cagada que fiz na vida (uma das). O bagulho bateu errado. Fiquei na maior paranóia da minha vida. Dava para escutar uma agulha caindo à distância, quem dirá o barulho do bambuzal me infernizando.
Bom, para completar faltou luz na porra da cidade. Fiquei lá parada, na maior nóia, com o queixo completamente descentralizado do resto do rosto, quase comendo a orelha.
De repente o barulho infernal, os monstros haviam chegado para me infernizar: Morcegos.
Centenas deles também gostavam do ateliê, e decidiram aquele dia sair do telhado e entrar na casa, talvez gostassem de um teco também, até hoje penso nisso.
É, não foi uma noite muito agradável, passei a noite escondida atrás de uma cortina, com o pavor oscilando entre os morcegos e a chegada de meu pai me encontrando no escuro, de pé, atrás de uma cortina e com um prato na mão. Não sei quanto tempo durou, mas me pareceu um século inteiro.

Agora estava eu ali, com a bunda toda suja pensando como iria voltar para o banheiro com aquele monstrengo lá dentro. Trancada não atrás das cortinas, mas da porta do banheiro, tendo como prisão não a mente, mas o resto da casa.

Já pensei algumas vezes o quanto levei sorte por ter nascido na época que nasci. No meu tempo o tal do crack estava no início, ninguém conhecia muito, ainda mais no interior.
Maluca do jeito que era teria caído nessa furada com certeza. Já se vão mais de nove anos que estou clean. Mas talvez a história não teria sido essa se fosse crack que estivesse usando atrás da cortina.
Tenho acompanhado um menino que perambula pelas ruas do bairro, deve ter uns quinze anos, não mais do que isso, vive na rua, não sei se mora na rua, mas anda sempre na área.
Quando cheguei por aqui ele era todo prestativo, andava sempre sorrindo, todo arrumadinho, conhecia o pessoal da rua, tinha o cabelo todo encaracolado jogado nos ombros. Mas pelo meu faro sabia que ele era como eu, uma antena parabólica que só atrai problemas.
Me ofereceu um baseado certa vez quando saí do ônibus, me chamava de loira.
- Ô loira, quer uma ajuda aí?
Com o tempo vi que trocou o tênis por chinelo, depois de um tempo só andava sem camisa, depois pedindo, depois descalço...
Ontem vi ele andando pela rua e como eu pela manhã, também estava todo cagado. Só que seu monstro é outro: o crack. Os cabelos uma paçoca, sem brilho nos olhos, nervoso, sem amor próprio, sem amor por nada, sem sentido...
Parei e tentei conversar com ele, mesmo sabendo que não estaria me escutando, na mente somente o som do corpo urrando, pedindo mais uma pedra.
- Só estou esperando a morte loira. Só a morte... Me arranja um real?

Sensação total de impotência.

Que merda, pensei comigo mesma, que dia cagado.