Conto surreal I

Sentado na beira da cama observava seu filho dormir. Olhava cheio de compaixão e amor, pensava o que não faria mais por ele. Até que aquele menino, que era fraco e cheio de moléstias desde quando era um bebê, pudesse caminhar pela vida com seu próprio esforço.
Estava cansado, iria olhá-lo só mais um pouquinho e em seguida iria se deitar:
- Se eu não tiver nenhum problema com minha consciência esta noite, acho que não terei mais.
Estava com medo de dormir, medo de dormir em paz, se isso acontecesse, não teria mais limites para a loucura que havia iniciado. Mas também tinha medo de não conseguir dormir mais, nunca mais, o que fizera era insano, seu pai se envergonharia dele.
Era homem direito, seu pai lhe ensinara a ser honesto, o pai, que era professor, dedicara a vida para educação, conseguindo criar com o salário minguado seis filhos, todos foram educados na escola mas também em casa, onde o velho lhes dava aulas na mesa sobre a vida, as utopias, o Anarquismo, o amor e a necessidade do homem buscar nele mesmo suas potencialidades humanas transformadoras.
Agora estava ali, com o fantasma do pai ao lado, sussurrando:
- Você matou um médico.
Adormeceu junto ao corpo quente do filho, aninhou-se no seu cobertor como se procurasse compreensão e perdão pelo seu ato alucinado.

Acordou pela manhã muito bem disposto, dormira incrivelmente bem, e por mais incrível que pudesse parecer estava com a consciência em paz, tal qual um criança, trazia no semblante a paz dos loucos. Começou a rir sozinho, um sorriso de ironia, de lobo com um naco de carne. Recordava do que havia feito.
Levara o filho ao Hospital Regional. Falou com três médicos durante uma madrugada inteira, cada um deu um diagnóstico diferente, desesperado corria de um lado para o outro rogando ajuda a todos que tinham qualquer peça de cor branca na indumentária. Sentia-se cada vez mais inútil, o filho ardendo em febre, quase desmaiando, desesperado chorou, chorou de raiva, de impotência, de indignação, lembrou do pai professor, que dera aulas de OSPB nos tempos da ditadura para não ser preso...
- Tudo pelos meus filhos. Tudo pelos meus filhos. – Era o que o velho sempre repetia.
Colocaram um soro no menino, espetaram a veia errada, ou nenhuma veia, o braço começou a inchar:
- Enfermeira, está errado, tem alguma coisa errada.
Pedia desesperado que alguém olhasse o menino.
- É assim mesmo... é assim mesmo.
Dizia uma de passagem.
- Não se preocupe, vai ficar bom.
Dizia outra.
E o braço inchando.
Chamou um médico, o mesmo que dera o diagnóstico absurdo de falta de alimentação correta. Ora, ora, podia faltar qualquer coisa dentro da sua casa, menos amor e alimentação correta, pensava, sempre tiveram fartura de comida. Mesmo que fosse para a casa de um simples mecânico. Não possuíam supérfluos, mas comida era farta. Na pressa de sair de casa com o menino, esqueceu de calçar seus pés. O médico olhou direto para seus pés descalços quando entrou naquela sala que fedia a remédios. Foi tudo que o médico olhou, seus pés, sequer olhou nos seus olhos desesperados.
- A boca desse menino está até com cheiro de fezes - Disse o clínico.
Sentiu-se morrer, quem era aquele desgraçado para falar aquilo?
Agora estavam ali, frente a frente novamente, o miserável dizendo que seu turno estava acabando, o braço ia inchar um pouco, mas ele ia encontrar uma enfermeira.
- Pôxa doutor, é só tirar e a agulha e colocar na veia novamente, não precisa muito, é um minuto da sua vida.
- Não dá cara, tô saindo.
O menino quase perdeu o braço...

No outro dia foi até o hospital, no mesmo horário. Esperou o médico e seguiu-o até o estacionamento. Parou na sua frente e disse:
- Você tem um tempo agora?
- Quem é você?
- Um pai desesperado.
Bateu com o taco de “jogar taco” do filho bem no meio da cara do médico, voou sangue e dentes pra todo lado. Bateu mais e mais, nas costelas, nos joelhos e na cara, desfigurou a cara do cara, foram exatas seis pauladas. O que era um acesso de fúria virou uma tragédia, o cara-médico, já havia morrido na primeira tacada.

Pela sensação de paz decidiu que aquilo deveria ir mais longe. Começou a se sentir um Charles Bronson barrigudo, ou um super-herói de histórias em quadrinhos dos Estados Unidos, talvez um Batman de GothamVille? Era preciso procurar os responsáveis por aquilo, o médico era o final da história, uma ponta desse novelo sujo.
Com suas grandes habilidades de mecânico das Ferramentas Gerais, passou a construir armas. Armas! Lembrava que seu pai nunca havia permitido nem brinquedos que lembrassem armas, e agora ali estava ele, fazendo armas caseiras para matar o secretário da saúde.
Matou o secretário e o diretor do hospital, mas não ficou satisfeito, aquilo ia mais fundo, e mais fundo ele entrava naquele furacão sem volta, naquela roda viva da violência que lhe dava um prazer mórbido.
Não satisfeito começou a ler os jornais e ver notícias na televisão, buscava ali as suas vinganças, para cada notícia dos jornais, buscava outra versão dos fatos em blogs, e acabava se deparando com outras “verdades”.
Foi assim que matou a sangue frio João da Silva Tebaldo, quando soube que este recebeu um gordo cheque da única empresa de ônibus da cidade.
- Você recebeu ou não recebeu? - Perguntava com o cano enfiado na boca do João da Silva.
- Não recebi nada, eu juro.
- Se você disser a verdade eu te deixo ir.
- Eu recebi. Mas...
- Não tem “mas”, seu filho da puta.
Espalhou os miolos do cara pela garagem onde o infeliz guardava seu carro.
Foi assim que matou alguns vereadores da câmara de GothamVille, João da Silva Marcusso, condenado por corrupção duas vezes pela justiça comum, se cagou todo antes da condenação final e de beijar a morte. Os outros assinaram suas sentenças quando decidiram se auto-aumentar. Sobraram dois, sendo que um deles, que é um merda e não sabe se posicionar, João da Silva Marquinzinho, levou uma surra bem dada para deixar de ser vendido. O outro que sobrou apanhou também, para mostrar que ninguém estava a salvo de sua “missão” e que o “Matador” não tinha partido. Os jornais já falavam no “Matador” da cidade, a cidade da ordem, matou até Maria da Silva Marinete, a lista não era só de homens.
O inventário dos corrompidos e gananciosos ia aumentando, faltava tempo para trabalhar, mas estava de bem com a vida, só o fantasma do pai lhe incomodava ainda: “A História não dá pulos meu filho”.
Empolgado com sua “justiça” explodiu o Shopping Mullersilva e toda a rede Angelonisilva da cidade, bem como todas as empresas que escravizavam os seus trabalhadores aos domingos, bastava funcionar no domingo para estar na sua lista negra, e ir pelos ares. Ninguém estava seguro, todos andavam desconfiados pelos ruas. Todos poderiam ser culpados.
Explodiu as revendas da Vivo, Tim, Claro, Oi e qualquer outra que deixasse alguém esperando no telefone mais do que um minuto, não deixando celular sobre celular.
Explodiu o terminal de ônibus, causando o caos na ordeira GhotamVille.
Na sua lista ainda faltavam algumas pessoas. Donos de empresa ônibus, alguns empresários, alguns delegados e mais alguns policiais também foram se indo na direção do inferno.
Uma dos principais traficantes da cidade cheiraram a última carreira. Traficantes de crack morreram com o pinto enfiado na boca.
Um imbecil que se dizia jornalista, João da Silva Toninho Chuvas, gritou feito um porco enquanto ele lhe arrancava o couro. Escalpelou um novo vereador eleito depois da morte dos outros, um tal de João da Silva Sandro Silva, que gritava bobagens sobre racismo, enquanto ele lhe dizia que aquilo era para ele aprender a ter dignidade e no mínimo manter a palavra.
Novamente o fantasma do pai: “A palavra de um homem é todo o seu tesouro meu filho”.
Até que um dia aquilo aconteceu, se preparava para matar João da Silva Henriquieto da Silveira. Já estava com o dedo no gatilho. Olhava nos olhos do desgraçado, foi quando o cara começou a rir, ria alto, mais alto e mais alto, de repente se pôs a gargalhar, e enquanto ria, seus olhos começaram a ficar vermelhos, chifres iam nascendo na cabeça careca reluzente, um rabo pontudo também começou a brotar do seu cóccix, e o cara falou, “Você, você?! Huahuhua. Você é um merda. Quem é você? Não passa de um réles professor.” E gargalhava exalando cheiro de whisky pelos poros.

Acordou todo suando e gritando, “o demônio, o demônio”.
Olhou para o lado e viu o filho dormindo, ele não era mecânico.
Lembrou-se que era um simples professor de Filosofia da rede pública. Detestava a violência. Ensinava na sala de aula que é preciso união, é preciso reivindicar, fazer manifestações. Incentivava aos alunos abrirem grêmios estudantis, ensinava-os a pensar, ensinava a entenderem seus direitos e lutar por eles, plantava e regava utopias nas floreiras dos seus corações.

- Caralho... que sonho maluco.
Levantou-se assustado e foi até a varanda, acendeu um Marlboro e pensou:
- É melhor parar de tomar essa porra de Nova Schin.
*****
Tô desmemoriada para escrever sobre minha vida.
Seguem então essas coisas surreais que povoam minha cabeça.
Tchau Joinville.