Olá Joinville (Sobre amar a vida - 8)


Na última postagem escrevi sobre uma visita que fiz a minha amiga (tia), irmã de minha mãe. As palavras a seguir são uma homenagem a ela, uma mulher além do tempo em que viveu, e acima de tudo, um ser humano surpreendente.

Ela sempre contava que sua vida havia sido uma merda, desde os tempos de criança, quando tentava desesperadamente agradar a todos. O seu pai (meu avô) abandonou sua mãe na rua por causa de outra mulher, que se tornou a minha avó (mãe da minha mãe).
Minha amiga era uma mulher baixinha (como eu), mas que quando falava se agigantava, sempre foi desprezada pela família, sempre tentaram silenciá-la, principalmente o seu pai, que escondeu as próprias torpezas de todos, menos de sua consciência.

- Fui puta sim! E puta com muito orgulho minha filha.
Eis aí um dos motivos que deixavam a família desesperada. Em uma cidade pequena, família tradicional e essa porra toda, ter um ‘ranço’ desse na família era um estorvo.

- Mas como tia? Como você pode dizer isso? Sendo usada pelos homens?
Dizia eu, a feministazinha de merda, que apanhava do marido.

Nasceu em 1933 eu acho, na época dos bondes, dos chapéus com tule, das piteiras e das luvas até o meio do braço. Adorava contar as suas histórias sobre conversas nos bondes. Foi abandonada pelo pai como já disse, e por conta disso passou boa parte da infância e da juventude tentando agradar aos outros, tentando fazer tudo para que os outros vissem que ela não era uma aberração por não ter pai. Traumas adquiridos na infância... escutados atrás das portas, comentários ouvidos nas calçadas do bairro, dedos apontados por outras crianças na escola, cochichos de professoras... Até o dia que se deu conta que o pai era um grandíssimo filho da puta. E passou a viver intensamente cada segundo da vida.
- Você tem que enfrentar seus demônios minha querida. Você tem que se gostar.

Na época que abandonou a cidade para ir morar em São Paulo, uma moça ou era “de família” - para casar - ou era “vagabunda”.
– Escolhi ver de perto a segunda opção - me disse certa vez.

Foi um tempo de muita melancolia e desespero, quando ela quis viver, amar, conhecer, estudar... as garras do preconceito não soltavam de suas meias de seda. Era sufocante. Ela contava que a sensação era de que estava mergulhando em um poço de petróleo e na medida em que afundava, mais pesada ficava sua existência. Chegando a deixá-la paralisada em muitos momentos, literalmente, o corpo travava e ela passava por processos de culpa extremos, sentindo-se impotente, infeliz e incapaz. Quando me contou sua história anos mais tarde, dizia:
– Agora compreendo que iria morrer se continuasse vivendo na mesma cidade, daquela maneira.

- Não entendo o que tem de orgulhoso nisso tia? Ser puta?
- Minha flor, naquele tempo, para você ser puta, tinha que ser muito feminina. Não era qualquer uma não. Hoje em dia qualquer sem vergonha pode fazer isso, basta rebolar a bunda. Era preciso ser muito mulher. Era preciso saber dançar sabia? Mas dançar mesmo. Um homem chegava e lhe pagava uma bebida por educação, não porque era obrigado, não porque a mulher lhe pedia uma esmola. Não tem nada mais triste de que uma puta pedir esmola. Era preciso ser conquistada. O homem lhe solicitava para uma dança, e não pedia que você tirasse a roupa, aliás, tirar a roupa só no quarto. Nada de ir passando a mão não. Tinha que conquistar.

Seus olhos brilhavam quando a memória buscava nos escaninhos do tempo suas aventuras nos cassinos do Jardim Sofia nos anos cinqüenta.
- Nós gostávamos dos que sabiam dançar. Pois esses eram da noite. Conheciam a boemia. Conheciam uma mulher. Chegavam perfumados e bebiam pouco, o suficiente para rirem e nos fazerem sorrir. Era bom ser puta minha filha, porque naquele tempo, além de ir contra a ordem estabelecida, além de sermos bem tratadas, estávamos acima de outras mulheres que só de longe pressentiam os ruídos das mudanças que se aproximavam nos anos sessenta, estávamos vivendo o sonho. Éramos independentes... com dinheiro... e loucas da cabeça.

Claro que nem tudo era um mar de rosas.
- Na noite você tem que ser respeitada. - segredava-me - Se não passam por cima de você.
E contava de amigas que haviam sucumbido ao furor da noite e toda a sua velocidade.
- É você que dá o ritmo, é você que dá o ritmo entende? Se não ela te arrebenta.

Muitas vezes falava como se ainda tivesse vinte e poucos anos.
Muitas vezes entrava em uma tristeza profunda porque viu a merda em que o mundo se transformou.

Trabalhou no teatro, aprendeu a pintar, a esculpir, a dançar... bebeu a noite, viveu a noite, fez festa onde havia tristeza, amou onde havia preconceito, pisou e dançou em cima dos cacos do passado... e ao sair com os pés sangrando desse ritual meio macabro, transformou-se naquela mulher quase mística.
– Você tem que enfrentar os seus demônios minha flor – repetia como um mantra.
- Tem que se deitar com eles. Sentar em cima deles e mostrar que é você quem goza. Se bem que era difícil eu não gozar nesta posição – e ria aos cântaros, como se tivesse contado uma piada muito engraçada.

E eu, ainda carregada dos preconceitos depositados ao longo da vida, pela mãe, pelo pai, pelo marido, pelas colegas solteiras, pelas colegas casadas, pelos padres, pensei durante um tempo que aquela mulher era realmente como diziam na cidade que eu morava: “Uma velha safada”

Algum tempo depois, quando comecei a visitá-la mais amiúde, fui me dando conta da transformação que ocorria comigo. De safada ela não tinha nada, pelo contrário, um ser que recendia amor, respirava amor...

Contou-me que gostou de muitas mulheres também. Não tinha receio nenhum de falar aquilo, falava tão naturalmente que eu ficava envergonhada, de início ficava envergonhada, porque era cheia de pudores podres, depois fui ficando envergonhada de me ver tão mesquinha, tão hipócrita perto dela.
- Você tem que se amar meu amor. Amei tanto, que minha alma parece que algumas vezes vai explodir. Quando me deito, brinco de escolher memórias e sinto tudo novamente. Ah, a saudade dói um pouco. Mas uma dor gostosa. Só tenho uma ferida que não curou.
Quando ela estava com trinta e nova anos (ou quarenta não me lembro bem), ela já havia saído de São Paulo e voltado para o Paraná. Muito bem de vida. Montou um ateliê onde dava aulas de escultura e pintura, além de vender alguns quadros e alugar uns quartos que construiu com o dinheiro que juntou. A casa era um paraíso na terra, com fontes, caminhos, varandas, balanços e locais sagrados. Recebia ali escritores, artistas, músicos, pintores e qualquer louco que também amasse a vida. As noites eram regadas a vinho, música e alegria de viver.
- A vida tem que ser sugada até o bagaço - dizia ela.
Numa dessas noites chegou por lá um jovem de dezenove anos, estudante de Filosofia da UEM (Universidade Estadual de Maringá), amigo de um amigo dela.

Ela diz que ao se aproximar daquele jovem sentiu-se inteira saudade. Sentiu-se inteira solidão. O corpo gritava que queria amor. Foi se aproximando devagar, para que ele não escutasse suas veias saltando no pescoço. Falou pouco também, para que a voz não tremesse. Ficou com medo que seu cheiro de desejo estivesse se espalhando pela sala e todos notassem. Riu-se, voltou ao mundo, pediu para encherem sua taça e tocarem uma música mais alegre... – Quero dançar. Gritou ela... e dançou para todos... e dançou para ele. Riu mais ainda e mais alto ainda, como se dissesse para vida: - Ah sua filha da puta gostosa.

Entregou-se inteira, como tudo que fez em sua vida. Não deixava espaço para pensar naqueles que não lhe traziam boas lembranças, dizia:
- Minha filha, você acredita que eu sofri por alguém que nunca me deu nada? Como é que eu pude me permitir sofrer por um pai que nunca me quis? Que nunca fez nada por mim? Como é que eu passei vinte anos tentando provar para os outros que eu era uma pessoa legal? Quando me dei conta que já havia se passado tanto tempo e eu estava ainda esperando pela opinião e aprovação dos outros mandei todos para o inferno.

O rapaz também se entregou aquela mulher vinte anos mais velha do que ele. E aprendeu com ela a ser inteiro.

O ano era 1972... era ditadura... o rapaz foi preso...

(Continua na próxima semana...)

Tchau Joinville.

Um comentário:

Anônimo disse...

É verdade, hj as coisas estão muito diferentes mesmo...
Mas o engraçado é q as pessoas falam muito das mulheres, os “homens” na verdade falam demais... não se dão conta q estão perdendo o espaço, talvez seja por isso, se deram conta, mas não querem admitir, q a mulher ocupa melhores lugares no mercado de trabalho, q ela esta cada vez mais independente, e eu não tenho vergonha de dizer q sou feminista, pois sou sim, quero ter as MINHAS coisas, o MEU trabalho, me SUSTENTAR sozinha, não dependo de homem nenhum para ser feliz... só depende de mim mesmo a MINHA FELICIDADE, pois quando casamos com alguém temos apenas um companheiro, não alguém para ser nosso pai dizendo oq temos q fazer.

As pessoas esquecem q junto com toda esta mudança, os homossexuais se revelaram, os traficantes estão tomando conta do pedaço, e ainda as pessoas vem me falar da MULHER? Ela só esta conquistando um espaço q é dela, sempre foi, mas ela não sabia!
Então para as mulheres, continuem assim, se valorizem, façam oq tem vontade, mas nunca, nunca mesmo abaixe a cabeça para um homem, e nunca chore, se tiver q chorar, só se for no enterro dele, e ainda chorar de felicidade.
Exceções existem sim, como tudo na vida há exceção, então se vc encontrou um homem exceção, curta e viva com ele, mas qq sinal diferente, já encosta na parede. Ninguém merece sofrer, DEUS nos quer sempre rindo, então para as mulheres q querem ser felizes, tem q se ajudar tbm, em primeiro lugar se ame, para depois amar alguém!!!